espiralar
Exu matou um pássaro Ontem, com uma pedra que só jogou Hoje
ditado iorubá
O presente ensaio, artigo, trabalho, que não se presta a ensaio, nem a artigo e nem a trabalho, parte de um hipotético encontro em Lisboa do filósofo italiano Giorgio Agamben e da intelectual brasileira Leda Maria Martins. Agamben tinha travado contato havia muito pouco tempo com ideia de “tempo espiralar” contida na obra de Leda. Já Leda sempre ficou intrigada com a ideia do “inatual” como perceptor do contemporâneo, no ensaio de Agamben “O Que É o Contemporâneo?" Como se dará esse encontro?
A metodologia de investigação é uma não metodologia. Sendo que essa não metodologia é em si uma metodologia. Não que isso seja proposital, mas sim pura inabilidade de quem escreve essas linhas e se comunica melhor com o corpo ou por imagens. A ideia de colagem, de mosaico, de mural e de fracasso permeia esse trabalho, e tudo isso foi gestado no sentido literal de gestação, durante epifanias com dia e hora marcadas no último semestre: as sextas-feiras de Oxalá. Sempre se quer mergulhar em águas profundas, mas as vezes águas mais rasas são mais difíceis de nadar. É recomendável apreciar esse rascunho (sim um rascunho!) escutando o álbum “Bom Mesmo É Estar Debaixo D Água” de Luedji Luna, 2020.

Leda tinha acabado de chegar no Aeroporto de Guarulhos em São Paulo, vinda de Belo Horizonte, Minas Gerais, onde ela, carioca de nascimento, havia se radicado há décadas. Em duas horas, embarcaria com destino a Portugal para um seminário na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Cansada e sempre apreensiva antes de voos, senta para tomar um café. Pede um cappuccino e confere os e-mails no celular. Ao olhar rapidamente as mensagens, quase não percebe um e-mail que a deixa intrigada. Enviado pelo organizador do seminário, dava notícia do desejo do filósofo italiano Giorgio Agamben de conhecê-la. Leda sorri com gosto ao mesmo tempo que, como mineira de vivência e de direito, fica desconfiada e pede uma porção de pães de queijo para acompanhar o café.
Nadia Taquari
Série "Oriki: é aquilo que não vê
2021
Agamben havia chegado a Lisboa no dia anterior. Com humor oscilante, reclamou do calor e da quantidade de turistas que circulavam na cidade. "Isto está parecendo Veneza!" vaticinou o italiano. Internamente, ele se perguntava o que estava fazendo ali, pois tinha se comprometido a não mais aceitar participar de eventos acadêmicos. No final da tarde, aconselhado por um funcionário do hotel onde estava hospedado, na Travessa das Merceeiras em Alfama, decidiu tomar um drink no terraço. Pediu uma taça de vinho branco e mirou o Tejo. Dois minutos depois, a música de fundo de pegada eletrônica foi a senha para que ele voltasse ao quarto. Ao entrar no elevador se depara com uma senhora de máscara e pensa: "será que não avisaram a ela que a pandemia acabou?"

Carybé
Oxóssi
1971
No seu ensaio “O Que é o Contemporâneo?", em uma perspectiva ocidental e europeia, Agamben, discorre sobre o conceito de contemporâneo e a sua relação com o tempo, trazendo a ideia de inatual que também está contida nas “Considerações Intempestivas” de Nietzsche. Agamben escreve:
“Aquele que pertence deveras ao seu tempo, que é deveras contemporâneo é alguém que não coincide perfeitamente com ele e nem se adapta às suas exigências e é por isso, nesse sentido, inactual.”
Agamben nos fala que é preciso ter um distanciamento do tempo presente para se perceber melhor esse tempo. Isso não coloca o contemporâneo em um desfasamento de tempo nostálgico, mas sim traz mecanismos para que esse contemporâneo possa existir.
Mesmo com esse distanciamento, que é fundamental para o sujeito contemporâneo exista em Agamben, esse tempo é um tempo ocidental, sucessivo, cumulativo, que corre no sentindo horário e não é compátivel com às cosmo-percepções africanas e afro-diásporicas.

Acadêmicos do Grande Rio
Exu
Imagem: Marco Antônio Teixeira
2022
os principios cosmológicos de Exu não são regidos pelas limitações ocidentais
Leda já havia visitado Lisboa outras vezes. Ela, que viveu em Ouro Preto e está enraizada em Minas, ficou fascinada na primeira visita à cidade, ao perceber recantos que lhe remetiam ao Brasil. Na segunda visita, essa percepção já estava um pouco mais diluída e, ao desembarcar pela terceira vez na cidade, essa percepção era quase inexistente. Instalada em um hotel com vista para a rotunda do Marquês e para o Parque Eduardo VII, ela vislumbrou a cidade e se deu conta que estava quase atrasada para a abertura do seminário que contaria com uma fala de Giorgio Agamben. No caminho entre o hotel e o local do seminário, Leda recebe uma mensagem pedindo a sua confirmação no encontro proposto por Agamben no dia 07 às 17h em um café no Chiado. Leda achou estranho o encontro não se dar nas dependências de onde estava se realizando o seminário, e lamentou que seu único dia livre em Lisboa, não seria de fato totalmente livre.
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Abdias do Nascimento
Okê Oxóssi
1970

Sônia Gomes
Gaiolas
2010
Ao acordar Agamben sentia uma leve dor de cabeça. Levantou, olhou rapidamente pela janela e avistou o casario de Alfama que se espraiava em direção ao rio. Como combinado, às 9h já estava à porta do hotel esperando o motorista que o levaria ao Colégio Almada Negreiros, onde faria uma participação na abertura do seminário. No dia seguinte, dia 6, ele se encontraria com Leda às 17h na A Brasileira do Chiado. O organizador do seminário e também professor do departamento de filosofia da FCSH que estava intermediando o encontro achou curioso o local escolhido pelo italiano.
Aganju, Xangô
Alapalá, Alapalá, Alapalá
Xangô, Aganju
O filho perguntou pro pai
"Onde é que 'tá o meu avô
O meu avô, onde é que 'tá?"
O pai perguntou pro avô
"Onde é que 'tá meu bisavô
Meu bisavô, onde é que tá?"
Avô perguntou "ô bisavô
Onde é que 'tá tataravô
Tataravô, onde é que 'tá?"
Tataravô, bisavô, avô
Pai Xangô, Aganju
Viva Egum, babá Alapalá
Aganju, Xangô
Alapalá, Alapalá, Alapalá
Xangô, Aganju
Alapalá, Egum, espírito elevado ao céu
Machado alado, asas do anjo Aganju
Alapalá, Egum, espírito elevado ao céu
Machado astral, ancestral do metal
Do ferro natural, do corpo preservado
Embalsamado em bálsamo sagrado
Corpo eterno e nobre de um rei nagô
Xangô
Aganju, Xangô
Alapalá, Alapalá, Alapalá
Xangô, Aganju
Gilberto Gil
Babá Alapalá
1977
Leda Maria Martins em sua obra “Performances do Tempo Espiralar: poéticas do corpo-tela”, ao falar da performance, da coreografia e de subjetividades negras como produtoras de pensamento, nos traz o conceito de “tempo espiralar”.
O tempo espiralado comporta movimentos de retrospeçção, de prospecção, contração e dilatação, diferente do tempo ocidental que se apresenta sucessivo, cumulativo e que anda para a frente.
O presente não é consequência de um passado imutável e irreversível. Há reversibilidade através da dança, das coreografias e de expressões artísticas e sociais associadas às cosmos-percepções africanas e afro-diásporicas. A autora usa com frequência o termo “voltejo” para designar passado, presente e as possibilidades de futuro como uma só entidade.
É um tempo feito de descontinuidades, trazendo uma perspectiva não linear da arte e do próprio tempo. O tempo em espiral que não está dissociado do corpo, mas um corpo como escrita do saber, ao que Leda chama de “afrografar”.
Em muitas culturas africanas, os saberes predominantes são o corpóreo e a oralidade. No conceito de “afrografar” trazido por Leda, há uma clara recusa a dualidade entre “escrita e oralidade”: elas coexistem, assim como coexistem com uma escrita gravada no corpo, gestual, rítmica, sincopada.
Leda, em sua obra, coloca a oralidade e as poéticas do corpo no mesmo nível de importância dos ditos “saberes já instituídos e canônicos”. Tempo e corpo. Na obra de Leda, temporalidades são gestos políticos e estéticos na busca por um corpo negro liberto.
Giorgio Agamben em outra passagem do seu texto “O que é o contemporâneo?”, escreve:
“o contemporâneo é alguém que fixa o olhar no seu tempo, para perceber não as suas luzes, mas o seu escuro. Todos os tempos são, para quem experimenta a sua contemporaneidade tempos obscuros”
A percepção de tempo nas definições de contemporaneidade contidas em Agamben são diferentes do tempo espiralar da obra de Leda. Uma parte de um perspectiva ocidental, europeia, canônica, branca, masculina. A outra parte de uma perspectiva não ocidental, mas que também não se inscreve no que o ocidente define como oriente, periférica, a oriente do oriente, não branca, corpórea, oral e feminina.
A percepção de tempo em Agamben ao definir o que é o contemporâneo, precede de uma inatualidade, de um distanciamento e de um anacronismo para que se possa captar o seu tempo. É o tempo presente, visto com distância, precedido de um passado e que prescinde de uma ideia de futuro.
No tempo espiralar conceituado por Leda, passado, presente e a possibilidade de futuro caminham juntos, como entidade una, em um tempo descontinuo. Passado, presente e futuro são contemporâneos de si mesmo, diluindo a ideia de contemporâneo.
Em Agamben, uma das definições de tempo no contemporâneo esta ligada a não percepção das luzes no seu tempo, mas sim o obscuro. Luz e trevas, inscritas na tradição judaico-cristã e colonial, não se inscrevem na percepção temporal das Áfricas e Diásporas e nem no tempo–corpo– escrita presentes na obra de Leda.
O tempo na percepção do contemporaneo contido em Giorgio Agamben, pode coexistir com o tempo espiralar contido na obra de Leda Maria Martins. O conceito de Leda, traz novas temporalidades para corpos não brancos e a possibilidade do corpo como gramática, um corpo- escrita fora do tempo linear.
o Hoje é o irmão mais velho do Amanhã, e a Garoa é a irmã mais velha da Chuva
provérbio africano

Rosana Paulino
Bastidores
1997
Na manhã do dia 06, Agamben recebe um telefonema de Roma. Por problemas familiares, ele terá de antecipar a sua volta a Itália em um dia. Em um primeiro momento ele fica apreensivo, para em seguida entrar em contato com Paulo, o organizador do seminário. Quarenta minutos depois do primeiro contato, Paulo retorna a Agamben e comunica que ele voltaria a Roma via Milão em um voo que sairia de Lisboa às 16h. O encontro com Leda que aconteceria no mesmo dia ficaria para o futuro.

Balé Folclórico da Bahia
Foto: Andrews Eccles
2018
O dia 6 amanheceu ensolarado. Leda participaria da mesa à qual foi convida pelo seminário naquela manhã. Por volta das 13h, ela se encontraria para um almoço com uma amiga há tempos radicada em Lisboa, almoçariam e depois seguiriam para Cascais com planos de visitar a Casa das Histórias Paula Rego. Antes de desligar o celular e se permitir ficar algumas horas "off", Leda conferiria na agenda: dia 7, encontro com Agamben na Brasileira do Chiado. Paulo passou parte da manhã envolvido com as questões da organização do seminário, além de ter mediado uma mesa e monitorado a remarcação da passagem de Agamben. Por volta das 14h, se deu conta que não tinha avisado a Leda que o encontro com Agamben havia sido cancelado. Todas as tentativas de contato com Leda foram infrutíferas. Às 17h, Paulo chegara A Brasileira do Chiado e 40 minutos depois, Leda ainda não havia aparecido. Às 19h, Leda chega ao hotel e se depara com um recado na recepção e, ao ligar o celular, se da conta das inúmeras tentativas de contato feitas por Paulo. Na sua agenda, o encontro com Agamben seria no dia seguinte, dia 07. Depois de retornar a Paulo, tomou um banho, deitou aliviada e pensou: "o meu último dia em Lisboa voltou a ser somente meu".
notas dissonantes:
se esse rascunho-trabalho, trabalho-rascunho fosse um pdf, com fonte Times New Roman, tamanho 12 e espaçamento de 1,5, ele teria 6 folhas no total, descontadas as imagens.
é tudo na primeira pessoa.
as referências não mencionadas estão inscritas no meu corpo.
os conceitos de Leda Maria Martins contidos no livro "Performances do Tempo Espiralar: poéticas do corpo-tela" são um dos motes da curadoria da 35a Bienal Internacional de São Paulo.
bibliografia:
Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Argos.
Martins, L. M. (2021). Performances do tempo espiralar: poética do corpo-tela. Cobogô.
Acadêmicos do Grande Rio (2022). Fala, Majeté! Sete Chaves de Exu. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Kv7mAi-SxdI
ficha técnica:
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Universidade Nova de Lisboa
Mestrado em Estética e Estudos Artísticos
Marcel Alcantara
Problemas de Arte Contemporânea
Professor: Paulo Pires do Vale
Lisboa, 2023
Ao chegar ao fim desse rascunho recomenda-se a escuta de “Moacir de todos os santos”, Letieres Leite & Orquestra Rumpillezz, 2022.